quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Onde estou eu? - Daniel Dennett

Daniel_Dennett_in_Venice_2006Um texto de Daniel Dennett é um divertido conto que expõe os principais problemas da filosofia da mente. Dennett imagina uma situação na qual, através de uma cirurgia, seria possível separar o cérebro de um ser humano do resto de seu corpo. O cérebro poderia ser mantido numa proveta e o corpo enviado para outro lugar, para executar tarefas perigosas.

Daniel Clement Dennett (Boston, 28 de março de 1942) é um proeminente filósofo estadunidense.
As pesquisas de Dennet se prendem principalmente à filosofia da mente (relacionada à ciência cognitiva) e da biologia. Dennett é ainda um dos mais proeminentes ateus da atualidade.
Para Dennett, os estados interiores de consciência não existem. Em outras palavras, aquilo que ele chama de "teatro cartesiano", isto é, um local no cérebro onde se processaria a consciência, não existe, pois admitir isto seria concordar com uma noção de intencionalidade intrínseca. Para ele a consciência não se dá em uma área especifica do cérebro, como já dito, mas em uma sequência de inputs e outputs que formam uma cadeia por onde a informação se move
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Onde estou eu?

Agora que ganhei meu processo, invocando a lei de liberdade de informação, sinto-me a vontade para revelar, pela primeira vez, um episódio curioso da minha vida que pode ser de interesse não apenas para os pesquisadores da Filosofia da Mente, da Inteligência Artificial e da Neurofisiologia como também para o público em geral.

Há alguns anos atrás fui procurado por agentes do Pentágono que me pediram para realizar uma missão altamente perigosa e secreta. Em colaboração com a NASA e Howard Hughes, o Departamento de Defesa estava gastando bilhões para desenvolver um dispositivo supersônico de túnel subterrâneo, o STUD (Supersonic Tunneling Underground Device). “Este dispositivo deveria cavar um túnel sob a terra, em grande velocidade, e colocar uma ogiva atômica especialmente projetada,” bem em cima do depósito de mísseis soviéticos" como estava escrito numa placa de bronze do Pentágono.

O problema foi que durante um teste preliminar, eles acabaram colocando a ogiva uma milha abaixo de Tulsa, em Oklahoma, e eles queriam que eu fosse até lá para recuperá-la. "Por que eu?", perguntei. Bem, a missão envolvia algumas aplicações pioneiras de pesquisas sobre o cérebro, e eles tinham ouvido falar do meu interesse por cérebros, e, é claro, de minha curiosidade de Fausto, de minha grande coragem e assim por diante. Bem, como poderia eu recusar? A dificuldade que levou o Pentágono a me procurar era que o dispositivo que eles tinham pedido que eu recuperasse era altamente radioativo e poderia apresentar efeitos imprevisíveis. De acordo com instrumentos de controle, alguma característica do dispositivo e sua complexa interação com bolsões de material geológico tinha produzido uma radiação que poderia causar graves danos ao tecido cerebral. Não se achou nenhuma maneira de proteger o cérebro desses raios mortíferos, que aparentemente não causavam nenhum dano a outros órgãos do corpo. Assim, tinha sido decidido que a pessoa a ser mandada para recuperar o dispositivo deveria "separar-se de seu cérebro". Seu cérebro deveria ser mantido num lugar seguro e executar suas funções normais de controle através de ondas de rádio. Eu iria me submeter a uma cirurgia que removeria completamente meu cérebro, que seria então mantido vivo através de um sistema artificial desenvolvido pelo Manned Spacecraft Center de Houston. Todos os fluxos entre inputs e outputs seriam re-estabelecidos por um par de transmissores de rádio micro-miniaturizados, um deles ligado ao cérebro e o outro aos ligamentos nervosos do crânio vazio. Nenhuma informação seria perdida, todas as conexões seriam preservadas. No início, fui um pouco relutante. Será que isto iria realmente funcionar? Os neurocirurgiões de Houston logo me encorajaram: "Pense nisto - eles diziam - como um mero alongamento dos nervos. Se o seu cérebro fosse deslocado cerca de uma polegada no interior de seu crânio, isto não iria alterar ou prejudicar a sua mente. Nós simplesmente vamos tornar os nervos indefinidamente elásticos, através de sua ligação com ondas de rádio".

Eles me mostraram as instalações do laboratório de Houston e eu vi a proveta borbulhante onde meu cérebro seria colocado, seu eu concordasse. Conheci o grande e brilhante grupo de neurologistas, hematologistas, biofísicos e engenheiros elétricos. Após vários dias de discussões e demonstrações, concordei em fazer uma tentativa. Fui submetido a uma enorme série de exames de sangue, mapeamentos cerebrais, experimentos, entrevistas e coisas do gênero. Eles anotaram minha autobiografia nos seus mínimos detalhes, gravaram listas enfadonhas de minhas crenças, esperanças, medos e gostos. Eles até mesmo listaram minhas músicas favoritas e me submeteram a uma série de sessões intensivas de psicanálise.

O dia da cirurgia finalmente chegou e, é claro, eu fui anestesiado e não me lembro nada da operação. Quando eu acordei da anestesia, abri meus olhos, olhei em volta e formulei a inevitável e tradicional pergunta chavão: "Onde estou eu?". A enfermeira sorriu para mim. "Você está em Houston", ela disse, e eu pensei que esta resposta ainda tinha grande chance de ser a verdade, de uma maneira ou de outra. Ela me passou um espelho. Certifiquei-me da existência de pequenas antenas saindo de seus suportes de titânio afixados no meu crânio.

"Acho que a operação foi um sucesso", eu disse. "Quero ir ver meu cérebro". Eles me levaram (eu estava um pouco tonto e cambaleante) por um longo corredor, até chegar ao laboratório de manutenção artificial da vida. Uma salva de palmas partiu do grupo de cientistas que estava reunido, e eu respondi com um gesto que acreditei ser um cumprimento gracioso. Ainda me sentindo tonto, ajudaram-me a chegar até a proveta. Olhei através do vidro. Lá, flutuando em algo que parecia ginger ale[1] estava, inegavelmente, um cérebro humano, embora quase todo recoberto por circuitos elétricos, pequenos tubos de plástico, eletrodos e toda uma parafernália. "Aquele é o meu?", eu perguntei. "Aperte o botão de transmissão de output lá do lado da proveta, e confira você mesmo", disse o diretor do projeto. Movi o botão para "DESLIGA" e imediatamente eu comecei a cair, grogue e enjoado, nos braços dos técnicos até que um deles gentilmente recolocou o botão na posição "LIGA". Enquanto eu recuperava o equilíbrio e a postura, pensei comigo mesmo: "Bem, aqui estou eu sentado numa cadeira dobrável, olhando através de um pedaço de vidro, para o meu próprio cérebro... Mas, um momento - disse para mim mesmo - não deveria eu ter pensado "Aqui estou eu, suspenso num fluído borbulhante, sendo olhado pelos meus próprios olhos?" Tentei elaborar este último pensamento. Tentei projetá-lo para o tanque, oferecendo-o esperançosamente para meu cérebro, mas não consegui fazer isto com qualquer convicção. Tentei novamente. "Aqui estou eu, Daniel Dennett, suspenso num fluido borbulhante, sendo olhado pelos meus próprios olhos". Não, não funcionou. Era ainda mais inquietante e confuso. Sendo um filósofo de firme convicção fisicalista, eu acreditava piamente que meus pensamentos estavam ocorrendo em algum lugar do meu cérebro: contudo, quando eu pensei "Aqui estou eu" onde o pensamento ocorria para mim era aqui, fora da proveta, onde eu, Dennett, estava de pé, olhando para meu cérebro.

Tentei várias vezes pensar em mim mesmo como estando dentro da proveta, mas não deu certo. Tentei treinar-me fazendo alguns exercícios mentais. Pensei comigo mesmo: "O sol está brilhando ", cinco vezes, numa sucessão rápida, cada vez me imaginando num lugar diferente: por ordem, o canto ensolarado do laboratório, depois, o gramado do jardim do hospital, Houston, Marte e Júpiter . Achei que eu tinha pouca dificuldade em fazer meu "lá" saltar por todo o mapa celestial com suas referências adequadas. Eu podia enviar um "lá" num instante, para os mais distantes confins do espaço, e em seguida dirigir o próximo "lá" para o quadrante superior esquerdo de uma sarda do meu braço. Por que eu estava tendo problema com "aqui"? "Aqui em Houston" funcionava bem, e assim era com "aqui no laboratório" e até mesmo com "aqui nesta parte do laboratório", mas "aqui na proveta" sempre parecia uma estranha sentença na minha mente, sem nenhum significado. Tentei fechar meus olhos enquanto pensava nisto. Isto parecia ajudar, mas mesmo assim eu não conseguia afastar esta idéia, exceto talvez por uma fração de segundo. Eu não podia ter certeza. A descoberta de que eu não podia ter certeza era também inquietante. Como poderia eu saber onde era referido por "aqui" quando eu pensava "aqui"? Poderia eu pensar que eu me referia a um lugar quando de fato eu me referia a outro? Eu não via como admitir isto a não ser desfazendo os pequenos limites que separam a intimidade entre uma pessoa e sua própria vida mental - limites que teriam sobrevivido ao massacre de neurocientistas e de filósofos fisicalistas e behavioristas. Talvez eu fosse incorrigível acerca de onde eu me referia quando eu dizia "aqui". Mas nas circunstâncias presentes tudo indicava que havia duas possibilidades: ou eu estava condenado a sistematicamente conceber falsos pensamentos dêiticos [2] pela pura e simples força de hábitos mentais ou a conceber que onde uma pessoa está (e portanto onde seus pensamentos são identificados quando se efetua uma análise semântica) não é necessariamente onde o seu cérebro, ou seja, o estofo físico de sua alma, está. Estonteado por tanta confusão, tentei me orientar usando um estratagema preferido pelos filósofos. Comecei por atribuir nomes às coisas.

"Yorick", disse em voz alta para meu cérebro, "você é o meu cérebro". O resto do meu corpo, sentado nesta cadeira, eu chamarei de "Hamlet". Assim, aqui estamos todos nós: Yorick é meu cérebro, Hamlet é meu corpo, e eu sou Dennett. E então, onde estou eu ? E quando eu penso: "onde estou eu?", onde ocorre tal pensamento? Ele ocorre no meu cérebro, perambulando pela proveta, ou exatamente aqui, entre minhas orelhas, onde ele parece ocorrer? Ou em nenhum lugar? Suas coordenadas temporais não parecem causar problemas, mas ele deve ter também coordenadas espaciais. Comecei a fazer uma lista de alternativas:

1- Aonde vai Hamlet, Dennett vai também - Este princípio foi facilmente refutado recorrendo-se aos já conhecidos experimentos mentais com transplantes de cérebros, tão apreciados pelos filósofos. Se Tom e Dick trocam de cérebro, Tom é a pessoa com o corpo que era de Dick - pode-se perguntar para ele, e ele dirá ser Tom e contará os detalhes mais íntimos da autobiografia de Tom. Era suficientemente claro, então, que meu corpo e eu poderíamos ser bons companheiros, mas não que , da mesma maneira, eu poderia ser separado de meu cérebro. O corolário que emerge tão claramente a partir de experimentos mentais é que numa operação de transplante de cérebro quer-se o doador e não o receptor. É melhor chamar tal operação de transplante de corpo. Esta parece ser a verdade.

2- Onde Yorick vai, Dennet vai também - Esta alternativa não parece ser boa. Como poderia eu estar na proveta e não estar indo para nenhum lugar, quando eu estava fora da proveta, olhando para ela e começando a fazer planos secretos de retornar para o meu quarto para um almoço substancioso? Isto significaria escamotear a questão, mas mesmo assim parecia que com isto se chegava a algo importante. Na procura de algum apoio para minha intuição topei com um argumento legalista que poderia ter sido considerado interessante por Locke.

Suponhamos, eu argumentava comigo mesmo, que eu agora fosse voar para a Califórnia, roubar um banco e ser preso. Em qual estado eu seria processado: na Califórnia, onde o roubo aconteceu, ou no Texas, onde são mantidos os equipamentos especiais que conservam seus cérebros? Seria eu um criminoso do Texas, manipulando, por controle remoto, um cúmplice da mesma espécie na Califórnia? Parecia possível que eu poderia levar vantagem sobre a falta de uma decisão sobre essa questão de jurisdição, embora, talvez este fosse considerado um crime interestadual e portanto federal. De qualquer maneira, suponhamos que eu fosse condenado. Será que o estado da Califórnia se satisfaria em jogar Hamlet na masmorra sabendo que Yorick estava vivendo a boa vida e se banhando luxuriosamente nas águas do Texas? Será que o estado do Texas encarceraria Yorick deixando Hamlet livre para pegar o próximo navio para o Rio de Janeiro? Esta alternativa me era atraente. A não ser no caso de pena capital ou alguma outra punição cruel e pouco habitual, o estado seria obrigado a manter o sistema de manutenção de vida artificial para Yorick, embora eles pudessem removê-lo de Houston para Leavenworth, e a não ser pela humilhação, eu não me incomodaria e me consideraria um homem livre nessas circunstâncias. Se o estado tem interesse em mostrar sua eficácia em prender pessoas em instituições, ele falharia ao tentar me prender colocando Yorick lá. Se isto for verdade, eu sugiro uma terceira alternativa.

3 - Dennett está onde quer que ele pense estar - Generalizando, isto corresponde a seguinte afirmação: num dado tempo uma pessoa tem um ponto de vista e a localização do ponto de vista (que é determinada internamente pelo conteúdo do ponto de vista) é também a localização da pessoa.

Tal proposição também me deixa um pouco perplexo, mas ela me parece um passo na direção correta. O único problema era que ela parecia nos colocar numa situação pouco confiável, do tipo "cara você ganha e coroa você perde" no que diz respeito a localização. Não estivera eu freqüentemente errado acerca de onde eu estava, ou pelo menos freqüentemente incerto? Não se pode ficar perdido? Claro que perder-se geograficamente não é a única maneira de perder-se. Se alguém se perde num bosque esse alguém pode tentar encontrar um caminho, com o consolo de que pelo menos sabia onde estava: estava bem aqui nos arredores conhecidos de seu próprio corpo. Talvez neste caso não fosse necessário fazer um esforço de atenção muito grande. Contudo, há enrascadas muito piores que podemos imaginar, e eu não estaria certo de não estar numa dessas situações neste momento.

Ponto de vista certamente tem a ver com localização pessoal, mas esta é uma noção pouco clara. É óbvio que o conteúdo do ponto de vista de alguém não coincide nem é determinado pelo conteúdo das crenças ou pensamentos dessa pessoa. Por exemplo, o que dizer acerca do ponto de vista de uma pessoa que assiste Cinerama e que grita e se contorce na sua cadeira na medida que o carrinho da montanha russa desliza rapidamente e faz com que ela perca a noção real das distâncias? Terá ela se esquecido que está sã e salva, sentada numa cadeira do auditório? Sobre isto inclino-me a dizer que a pessoa está experienciando uma mudança ilusória de ponto de vista. Em outros casos, minha inclinação para chamar tais mudanças de ilusórias seria menor. Os operadores de laboratórios e de fábricas que manipulam materiais perigosos ao se utilizar de braços e de mãos mecânicas controladas por feedback sofrem uma mudança de ponto de vista que é mais nítida e muito mais acentuada do que qualquer coisa que o Cinerama possa provocar. Eles podem sentir o peso e o jeito escorregadio dos frascos que eles manipulam com seus dedos metálicos. Eles sabem perfeitamente bem onde eles estão, não geram falsas crenças através de sua experiência, e apesar disto tudo se passa como se eles estivessem numa câmara isolada que eles estão observando. Através de esforço mental, eles conseguem mudar seu ponto de vista para frente e para trás, como se estivessem fazendo um cubo de Necker transparente ou fazendo um desenho de Escher mudar de orientação diante dos olhos de alguém. Parece extravagante supor que ao fazer essa pequena ginástica mental eles estejam se transportando para a frente e para trás.

O exemplo dessas pessoas me trouxe esperança. Se eu estivesse de fato na proveta, a despeito de minhas intuições, eu poderia ser capaz de me treinar para adotar tal ponto de vista, mesmo que como um hábito. Eu deveria "ser um habitante" de imagens de mim mesmo confortavelmente flutuando em minha proveta, emitindo ordens para aquele corpo familiar fora. Eu refleti que a facilidade ou a dificuldade desta tarefa era, presumivelmente, independente da verdade acerca da localização do cérebro de uma pessoa. Se eu tivesse praticado antes da operação poderia agora estar achando que isto seria minha segunda natureza. Você poderia tentar agora exercer esta ilusão de ótica. Imagine que você tenha escrito uma carta inflamada, que foi publicada no Times, e que resultou na decisão do governo de colocar o seu cérebro por um período probatório de três anos na sua temida Clínica Cerebral, em Bethesda, Maryland. Claro que ao seu corpo é concedida a liberdade de ganhar um salário e gerar uma renda sobre a qual recairão impostos. Neste momento, contudo, seu corpo está sentado num auditório ouvindo um relato peculiar de D. Dennett acerca de uma experiência semelhante. Tente isto. Pense em Bethesda e depois volte seus olhos demoradamente para seu corpo, tão distante, embora parecendo estar tão próximo. É somente através de um esforço a grande distância (seu? do governo?) que você pode controlar seu impulso de fazer suas mãos baterem palmas, num aplauso educado, antes de pilotar o velho corpo para a sala de estar e tomar um merecido copo de sherry no salão. A tarefa para a imaginação é certamente difícil, mas se você atingir seu objetivo, os resultados poderão ser consoladores.

De qualquer forma, lá estava eu em Houston, perdido no pensamento, (como alguém poderia dizer), mas não por muito tempo. Minhas especulações foram logo interrompidas pelos médicos de Houston, que queriam testar meu novo sistema nervoso protético antes de me mandarem para aquela missão arriscada. Como eu disse antes, eu estava um pouco tonto no começo, e isto não era surpreendente, embora eu logo tivesse me habituado as novas circunstâncias (que eram, afinal de contas, quase indistinguíveis de minhas antigas circunstâncias). Minha acomodação não era perfeita, e até então eu estava ainda sendo incomodado por pequenas dificuldades de coordenação. A velocidade da luz é muito grande, apesar de finita, e a medida em que meu corpo e meu cérebro se separavam cada vez mais, a delicada interação de meu sistema de feedback sofria desarranjos, por causa das diferenças nos intervalos de tempo. Da mesma maneira que alguém fica quase incapaz de falar na medida em que ouvir sua própria voz ou o eco de sua própria voz ocorrer com atraso no tempo, assim por exemplo, eu também fico virtualmente incapaz de seguir um objeto em movimento com os meus olhos quando meu cérebro e meu corpo estão separados a uma distância de umas poucas milhas. Sob muitos aspectos, este defeito é dificilmente detectável embora eu não possa mais chutar uma bola imediatamente, quando ela se aproxima de mim. É claro que há algumas compensações. Embora bebidas alcoólicas adquiram um sabor melhor do que nunca, e aqueçam minha goela ao mesmo tempo que corroem meu fígado, posso bebê-las a vontade, o quanto eu quiser sem me sentir nem um pouco inebriado, uma curiosidade que alguns de meus amigos mais próximos devem ter notado (embora eu ocasionalmente tenha simulado embriaguez para não chamar muito a atenção para minha situação peculiar). Por razões similares, eu tomo aspirina oralmente para uma distensão no pulso, mas se a dor persiste, eu peço a Houston para me ministrar codeína in vitro. Nas ocasiões em que fico doente a conta de telefone pode ser astronômica.

Mas vamos voltar para minha aventura. Finalmente, tanto os médicos quanto eu estávamos convencidos de que eu estava pronto para iniciar minha missão subterrânea. Assim, deixei meu cérebro em Houston e fui de helicóptero para Tulsa. Bem, era assim que as coisas pareciam ser. É dessa maneira que eu as descrevia, da perspectiva de minha cabeça. Durante a viagem refleti mais um pouco acerca de minha ansiedade inicial e cheguei a conclusão de que minhas especulações no período pós-operatório tinham sido marcadas pelo pânico. A questão não era tão estranha ou metafísica como eu tinha suposto até então. Onde estava eu? Certamente em dois lugares: dentro da proveta e fora dela. Da mesma maneira que alguém pode estar com um pé em Connecticut e outro em Rhode Island, eu estava em dois lugares ao mesmo tempo. Eu tinha me tornado um dos indivíduos mais espalhados de que se ouvira falar. Quanto mais eu pensava sobre esta resposta, mais ela me parecia obviamente verdadeira. Mas, estranhamente, quanto mais ela parecia verdadeira, menos importante parecia ser a questão para a qual tinha encontrado resposta. Um destino triste, mas não incomum para uma questão filosófica. Claro que a resposta não me satisfazia completamente. Havia algumas interrogações para as quais eu gostaria de ter uma resposta, e elas não eram "Onde estão todas as minhas partes?" nem "Qual meu ponto de vista habitual?" ou pelo menos me parecia que havia tal interrogação. Pois parecia inegável que em algum sentido EU e não apenas a maior parte de mim estava descendo para o interior da terra, sob Tulsa, para procurar uma ogiva atômica.

Quando eu encontrei a ogiva, senti-me feliz pelo fato de ter deixado meu cérebro em outro lugar, pois o ponteiro do contador Geiger especialmente construído que eu levava, estava quase estourando. Chamei Houston através de meu rádio, e informei a central de controle de operações de minha posição e de meus progressos. Em resposta, eles me deram instruções para desmantelar a ogiva baseados em minhas observações locais. Eu tinha iniciado meu trabalho com o maçarico quando de repente algo terrível ocorreu. Fiquei totalmente sem comunicação. De início pensei que meus fones de ouvido tivessem quebrado, mas quando bati no meu capacete, não ouvi nada. Aparentemente os transmissores auditivos tinham pifado. Eu não podia mais ouvir Houston, nem minha própria voz, mas eu podia falar, e assim, eu comecei a contar o que tinha acontecido. Em suma, eu sabia que havia alguma outra coisa que estava indo mal. Meu aparato vocal tinha ficado paralisado. Então minha mão direita ficou mole - um outro transmissor tinha quebrado. Eu estava realmente numa encrenca muito grande. Mas coisa pior estava por vir. Depois de mais alguns minutos fiquei cego. Amaldiçoei minha sorte, e amaldiçoei os cientistas que me colocaram diante de perigo tão grave. Lá estava eu: surdo, mudo e cego, num buraco radioativo mais de uma milha abaixo de Tulsa. Por fim, minha ligação com meu cérebro, por ondas de radio, foi interrompida, e eu estava subitamente diante de um novo e ainda mais chocante problema: enquanto no instante anterior eu tinha sido enterrado vivo em Oklahoma, agora eu estava desencarnado em Houston. Após alguns minutos de ansiedade abateu-se sobre mim a idéia de que meu pobre corpo jazia centenas de milhas a distância, com o coração pulsando e os pulmões respirando, mas por outro lado, tão morto quanto o corpo de qualquer doador num transplante de coração, estava meu crânio com um sistema eletrônico quebrado, inútil. A mudança de perspectiva que antes me parecia quase impossível agora era bastante natural. Embora eu pudesse me pensar como estando de volta para meu corpo no túnel abaixo de Tulsa, precisei fazer algum esforço para manter essa ilusão. Pois certamente era uma ilusão supor que eu estava em Oklahoma: eu tinha perdido qualquer contato com aquele corpo.

Ocorreu-me então, num desses momentos de revelação sobre os quais é preciso pensar com alguma suspeita, que eu tinha topado com uma impressionante demonstração da imaterialidade da alma baseada em princípios e premissas fisicalistas. Pois a medida em que o último sinal de rádio entre Tulsa e Houston desapareceu, não tinha eu mudado de Tulsa para Houston na velocidade da luz? E por acaso não tinha eu conseguido fazer isto sem nenhum acréscimo de massa? O que se moveu de A para B em tal velocidade era certamente eu, ou, de alguma maneira, minha mente ou minha alma - o centro imaterial de meu ser e a sede de minha consciência. Meu ponto de vista tinha, de alguma maneira, ficado para trás, mas eu já tinha notado a influência indireta do ponto de vista sobre a localização pessoal. Eu não podia entender como um filósofo fisicalista podia discordar disto, a não ser tomando o horripilante e contra-intuitivo caminho de banir qualquer tipo de discurso sobre pessoas. Mesmo assim a noção de pessoa estava tão entranhada na visão de mundo de todos - ou pelo menos isto era o que me parecia - que qualquer negação desta noção seria tão pouco convincente e tão pouco engenhosa como a negação cartesiana "non sum".

A alegria da descoberta filosófica sobreveio a mim a medida em que horas e minutos de desesperança acerca de minha situação ficavam claros. Ondas de pânico e até mesmo de náusea se apossaram de mim, tornadas ainda mais horríveis pela ausência de uma fenomenologia corporal. Não havia fluxo de adrenalina latejando nos braços, eu não sentia o coração disparar nem havia salivação premonitória. A uma certa altura senti uma sensação de afundamento nas minhas entranhas e isto me causou a ilusão momentânea que me fez ter a falsa crença de que eu estava sofrendo o reverso do processo que tinha me deixado nesta situação - uma gradual reencarnação. Mas o isolamento e o caráter único daquela pontada logo me convenceram de que aquele era simplesmente o primeiro flagelo da alucinação com corpos fantasmas que eu, como qualquer vítima de amputação, provavelmente sofreria.

Meu humor estava caótico. De um lado, eu estava aceso e entusiasmado com minha descoberta filosófica e forçando meu cérebro (uma das poucas coisas familiares que eu ainda podia fazer) a imaginar como eu comunicaria minha descoberta para jornais e revistas especializadas, enquanto, por outro lado, eu me sentia amargo, solitário, cheio de horror e incerteza. Felizmente este estado não durou muito, pois a equipe científica me sedou, colocando-me num sono sem sonhos, do qual eu acordei ouvindo com incrível fidelidade a abertura do meu trio de piano favorito, tocando Brahms. Era para isto que eles queriam ter uma lista das minhas músicas preferidas! Não levou muito tempo para perceber que eu estava ouvindo música sem ter ouvidos. O output do stereo estava sendo colocado em mim através de alguma sofisticada retificação do circuito, diretamente no meu nervo auditivo. Eu estava "dopado" com Brahms, uma experiência inesquecível para qualquer fanático por música. No fim da gravação não foi surpresa escutar a voz do diretor do projeto reaparecendo e falando num microfone que agora era meu ouvido protético. Ele confirmou minha análise do que tinha saído errado e me assegurou que já estavam tomando providências para me reencarnar. O diretor científico não entrou em detalhes e, após mais algumas músicas, eu estava caindo no sono outra vez. Meu sono durou, eu soube mais tarde, quase um ano, e quando acordei encontrei meus sentidos totalmente recuperados. Contudo, quando olhei no espelho contudo, senti-me um pouco amedrontado ao ver um rosto pouco familiar. Estava com a barba crescida e um pouco mais pesada, ainda refletindo alguma semelhança com minha antiga face e com a mesma aparência de inteligência brilhante e caráter resoluto, mas certamente era um novo rosto. Algumas auto-explorações de caráter íntimo confirmaram que aquele era um novo corpo e o diretor do projeto confirmou minhas conclusões. Ele não forneceu nenhuma informação acerca da história passada do meu novo corpo e eu decidi (sabiamente, quando olho em retrospectiva) não pedir nenhuma. Como vários filósofos pouco familiares com meu suplício especularam mais recentemente, a aquisição de um novo corpo deixa a pessoa intacta. E após um período de ajuste a uma nova voz, novas forças musculares e fraquezas etc. a personalidade de alguém é de uma maneira geral também preservada. Mudanças mais acentuadas de personalidade foram observadas regularmente em pessoas que se submeteram a cirurgia plástica ostensiva e em operações de troca de sexo mas creio que ninguém contestaria o fato de que a pessoa sobrevive a tais casos. De qualquer maneira eu logo me acomodei ao meu novo corpo ao ponto de me tornar incapaz de registrar suas novidades em minha consciência e até mesmo em minha memória. Minha visão no espelho logo se tornou completamente familiar. Nesta imagem ainda havia antenas, e assim eu não fiquei surpreso ao saber que meu cérebro não tinha sido removido de seu habitat no laboratório de manutenção artificial da vida.

Eu decidi que o velho e bom Yorick merecia uma visita. Eu e meu novo corpo, que poderemos chamar de Fortinbras fomos ao laboratório para receber mais uma rodada de aplausos dos técnicos, que estavam, é claro, se congratulando a si próprios e não a mim. Uma vez mais parei defronte da proveta e contemplei o pobre Yorick, e numa atitude extravagante, mais uma vez empurrei o interruptor para a posição DESLIGA. Imaginem minha surpresa quando nada anormal aconteceu. Não senti que ia desmaiar, nem náusea, nem nenhuma mudança perceptível. Um técnico correu a colocar o interruptor na posição LIGA, mas mesmo assim eu não senti nada. Exigi uma explicação, que o diretor do projeto se apressou em dar. Parece que antes de eu ser operado, eles tinham construído um computador que era uma réplica de meu cérebro, reproduzindo toda a estrutura de processamento de informação e a velocidade computacional de meu cérebro - tudo foi reproduzido num programa computacional gigante. Após a operação - mas antes deles ousarem me mandar para minha missão em Oklahoma - eles rodaram este sistema computacional e Yorick lado a lado. Os sinais de rádio que saiam de Hamlet foram simultaneamente enviados para os receptores de Yorick e para a placa de inputs do computador. E os outputs de Yorick não eram apenas enviados de volta para Hamlet , meu corpo, eles eram gravados e comparados com os outputs simultâneos do programa de computador, que era chamado de Hubert - por razões obscuras para mim. Por dias e até por semanas, os outputs eram idênticos e sincronizados, o que é claro não provava que eles tinham conseguido copiar a estrutura funcional do cérebro, mas os resultados empíricos eram, de qualquer forma, muito encorajadores.

Os inputs de Hubert, e portanto sua atividade, foram mantidos em paralelo com os de Yorick durante os dias em que eu estava desencarnado. E agora, para demonstrar isto, eles de fato ligaram o interruptor mestre que colocava Hubert pela primeira vez em linha direta para controle do meu corpo - não Hamlet , mas Fortinbras. (Eu soube que Hamlet nunca mais foi retirado de sua tumba subterrânea e podia agora ser considerado como algo que voltou a ser pó. Na lápide de meu túmulo ainda está a grandiosa carcaça do dispositivo abandonado, com a palavra STUD resplandecente e escrita com letras enormes - algo que provavelmente dará aos arqueólogos do próximo século uma curiosa intuição acerca dos rituais fúnebres de seus ancestrais).

Os técnicos do laboratório logo me mostraram o interruptor principal, que tinha duas posições, uma B para Cérebro (eles não sabiam que o nome de meu cérebro era Yorick), e outra H para Hubert. O interruptor estava na posição H e eles me explicaram que se quisesse, eu podia mudá-lo de volta para B. Com o coração nas mãos (e com o cérebro na proveta), eu decidi mudar o interruptor para B. Nada aconteceu. Só um clique, foi tudo. Para testar o que diziam, e com o interruptor principal agora na posição B, apertei o transmissor de outputs de Yorick na proveta. Comecei a desmaiar. Quando o interruptor foi recolocado na posição anterior e eu recuperei consciência (por assim dizer), eu continuei a brincar com o interruptor principal, empurrando-o para a frente e para trás. Descobri que com exceção do momento do "click" eu não podia detectar nenhum tipo de diferença. Eu podia mudar o interruptor no meio de uma sentença, e assim a sentença que eu tinha começado a falar sob o controle de Yorick era completada, sem nenhum intervalo ou dificuldade de qualquer espécie sob o controle de Hubert. Eu tinha um cérebro sobressalente, um dispositivo protético que poderia algum dia manter meu equilíbrio, no caso de algum tropeção desajeitado de Yorick. Alternativamente, eu poderia deixar Yorick como sobressalente e usar Hubert. Não parecia fazer nenhuma diferença qual deles eu escolhia, pois o desgaste e a fadiga do meu corpo não tinham qualquer efeito debilitante sobre nenhum dos cérebros, estivesse ele de fato causando os movimentos de meu corpo ou estivesse ele apenas produzindo seus outputs por aí afora.

O único aspecto verdadeiramente inquietante deste novo aperfeiçoamento era a possibilidade, da qual logo me apercebi, de alguém separar o sobressalente -Hubert ou Yorick, conforme o caso - de Fortinbras e colocá-lo num outro corpo,- algum Johnny Rosencrantz ou Guildenstern. Então haveria duas pessoas, isto ficava claro. Uma delas seria uma espécie de super-irmão gêmeo. Se houvesse dois corpos, um sob o controle de Hubert e outro sendo controlado por Yorick, então qual deles o mundo reconheceria como sendo o verdadeiro Dennett? E, seja qual fosse o que o mundo decidisse, qual deles seria eu? Seria eu aquele com o cérebro de Yorick, em virtude da prioridade causal de Yorick e em virtude da primeira relação íntima com o corpo original de Dennett, Hamlet? Isso pareceria um pouco legalista, algo que recenderia demais ao arbítrio da consangüinidade e à idéia de posse legal para ser convincente a nível metafísico. Pois suponhamos que antes da entrada do segundo corpo em cena, eu tivesse mantido Yorick como sobressalente por anos e que eu tivesse deixado os outputs de Hubert dirigir o meu corpo - ou seja Fortinbras - todo aquele tempo. O casal Hubert-Fortinbras pareceria então por usucapião (para combater uma intuição legalista com outra) ser o verdadeiro Dennett e o herdeiro legal de tudo aquilo que era de Dennett. Esta era, com certeza, uma questão interessante mas não tão premente quanto uma outra que me inquietava. Minha intuição mais forte era que em tal caso Eu sobreviveria a medida em que qualquer uma das duplas cérebro/corpo permanecesse intacta, mas eu mesmo tinha sentimentos confusos acerca de se eu deveria desejar que ambos sobrevivessem.

Discuti minhas preocupações com os técnicos e com o coordenador do projeto. A perspectiva de haver dois Dennetts me horrorizava sobretudo por razões sociais. Eu não gostaria de ser meu próprio rival na disputa pelo afeto de minha esposa, nem me agradava a perspectiva de dois Dennetts dividindo meu modesto salário de professor. Ainda mais vertiginosa e desagradável, contudo, era a idéia de saber demais acerca de uma outra pessoa, o mesmo ocorrendo dele em relação a mim. Como poderíamos nos encarar mutuamente? Meus colegas no laboratório argumentariam que eu estava ignorando o lado positivo do assunto. Não havia uma porção de coisas que eu gostaria de fazer, mas pelo fato de ser somente uma pessoa eu me tornava incapaz de realizar? Agora um Dennett podia ficar em casa e ser o professor e o homem de família, enquanto o outro poderia sair para uma vida de aventuras e de viagens - sentindo falta da família, é claro, mas feliz por saber que o outro Dennett cuidaria do lar. Eu podia ser fiel e adúltero ao mesmo tempo. Eu poderia até mesmo me cornear - sem falar de outras possibilidades mais lúgubres que meus colegas tentariam impor sobre minha imaginação já tão carregada. Mas meu suplício em Oklahoma (ou foi em Houston?) tornou-se menos aventureiro e por isso eu desisti dessa oportunidade que me estava sendo oferecida (embora, é claro, eu nunca estive certo de que ela estava sendo oferecida para mim).

Havia uma outra perspectiva ainda mais desagradável: que o sobressalente, Hubert ou Yorick conforme fosse o caso, fosse separado de qualquer input de Fortinbras e mantido desse jeito, isto é separado. Então, como no outro caso, haveria dois Dennetts, ou pelo menos dois requerentes do mesmo nome e posses, um incorporado em Fortinbras e o outro, triste e miserável, sem corpo. O egoísmo e o altruísmo fizeram-me tomar providências para que isto não acontecesse. Assim eu perguntei que medidas deveriam ser tomadas para me certificar que ninguém nunca poderia se intrometer nas conexões do receptor ou assumir o controle do interruptor sem meu (nosso? não, meu) consentimento. Uma vez que eu não desejava passar minha vida montando guarda no equipamento em Houston foi decidido por ambas as partes que todas as conexões eletrônicas no laboratório seriam mantidas trancadas. Tanto aqueles que controlavam o sistema de manutenção artificial de vida para Yorick como aqueles que controlavam o fornecimento de energia para Hubert seriam guardados com dispositivos a prova de falhas e eu levaria comigo o único interruptor-mestre, equipado com controle remoto de rádio, onde quer que eu fosse. Eu carrego isso amarrado em volta de minha cintura e - espere um momento - aqui está ele. Uma vez por mês eu inspeciono o equipamento, trocando os canais. Faço isso somente na presença de amigos, é claro, pois se o outro canal estiver, que Deus não permita, ou desligado ou ocupado com alguma outra coisa, haveria alguém que defenderia meus interesses e o mudaria , trazendo-me de volta do vazio. Pois conquanto eu pudesse sentir, ver, ouvir e sentir seja lá o que for que faz cair meu corpo após uma mudança no interruptor, eu seria incapaz de controla-lo. Por falar nisso, as duas posições do interruptor estão propositadamente sem marca, e assim eu nunca tenho a menor idéia de se eu estou passando de Hubert para Yorick ou vice-versa. (Alguns de vocês podem pensar que neste caso eu realmente não sei quem eu sou, e muito menos onde eu estou. Mas tais reflexões não tem mais a menor influência sobre minha Dennetticidade essencial, no meu próprio sentir quem eu sou. Se é verdade que num sentido em não sei quem eu sou, então essa é uma outra verdade filosófica de significado espantoso).

De qualquer maneira, até agora todas as vezes que eu mexi no interruptor, nada aconteceu. Por isso, vamos fazer uma pequena tentativa...

GRAÇAS A DEUS, EU PENSEI QUE VOCÊ NUNCA MAIS FOSSE VIRAR O INTERRUPTOR; você não pode imaginar como foram horríveis estas duas últimas semanas - mas agora você sabe, é a sua vez de ir para o purgatório. Quanto tempo estive esperando por este momento! você sabe, cerca de duas semanas atrás - desculpem-me senhoras e senhores, mas eu tenho que explicar isto para meu...um, irmão, creio que poderíamos dizer, mas ele já lhes contou os fatos, assim os senhores entenderão. Cerca de duas semanas atrás, nossos dois cérebros saíram um pouco de sincronia. Eu não sei, mais do que vocês, se o meu cérebro é agora Hubert ou Yorick, mas de qualquer maneira, os dois cérebros se separaram, e, é claro, uma vez que o processo se iniciou foi tomando vulto pois eu estava num estado receptivo ligeiramente diferente com relação ao input que nós dois recebemos, uma diferença que logo se ampliou. Em nenhum momento a ilusão de que eu estava controlando meu corpo - nosso corpo - foi completamente dissipada. Não havia nada que eu pudesse fazer - eu não podia chamar você. VOCÊ NEM SABIA QUE EU EXISTIA! É o mesmo que ser carregado dentro de uma jaula ou estar possesso - ouvindo minha própria voz dizer coisas que eu não queria dizer, olhando com frustração minhas mãos fazerem coisas que eu não tinha a menor intenção de fazer. Você se coçava, mas não da maneira que eu o teria feito e você me manteve acordado, tossindo e se revirando. Eu estava totalmente exaurido, a beira de um colapso nervoso, carregado por aí sem defesa, seguindo todo o seu roteiro infernal de atividades, mantido vivo apenas pelo conhecimento de que algum dia você viraria o interruptor.

Agora é sua vez, mas pelo menos você terá o conforto de saber que eu sei que você está lá dentro. Como uma mulher grávida estou comendo - ou pelo menos experimentando comida, cheirando, olhando - por dois agora, e eu tentarei facilitar as coisas para você. Não se preocupe. Assim que o colóquio terminar, você e eu vamos voar para Houston e veremos o que pode ser feito para arranjar para um de nós um outro corpo. Você pode ter um corpo de mulher - e seu corpo poderia ser da cor que você quiser. Mas vamos pensar bem. Eu te digo uma coisa: para ser justo, se nós dois queremos este corpo, eu prometo deixar o coordenador jogar uma moeda para estabelecer quem de nós fica com este, e quem tem que escolher um novo corpo. Isso vai garantir uma decisão justa, não é? De qualquer forma, eu cuidarei de você, eu prometo. Estas pessoas são minhas testemunhas.

Senhoras e senhores, esta comunicação que acabam de ouvir não é exatamente a comunicação que eu teria feito, mas eu lhes asseguro que tudo o que foi dito era perfeitamente verdadeiro. E agora, com licença, acho que eu - ou nós - gostaríamos de sentar.

Tradução de João de Fernandes Teixeira.


[1] Ginger ale é um tipo de refrigerante que foi muito popular nos anos 60 e 70.

[2] (N do tradutor): os dêiticos ou “indexicals” (no inglês) constituem os instrumentos lingüisticos para efetuar a designação demonstrativa e não simbólica. Por exemplo, os pronomes demonstrativos “este” e “aquele” quando aponto para dois vasos que se encontram diante de mim permite-me distingüi-los sem ter de descrevê-los ou referir-me a uma de suas características individuais.

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