segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

O ESTADO BRASILEIRO É LAICO?

211155_233448643376932_1683378699_nNesse post esclarecerei uma duvida muito comum em nosso meio; o estado brasileiro é laico, sim ou não? Sei que muitos fazem essa pergunta, quando observa a igreja interferindo tanto nas nossas leis, sobre tantos privilégios que ela tem, ensino religioso nas escolas públicas em fim…Espero esclarecer algumas de muitas dúvidas sobre esse assunto.

 

Introdução – O que é estado laico?

Não é fácil definir o Estado laico, é mais fácil dizer o que ele não é. Como a democracia. Mas, o que o Estado laico não é será tratado em outro lugar.

A laicidade do Estado é um processo. Antigamente, todos os Estados baseavam sua legitimidade no sagrado, de modo que o rei ou imperador era considerado um Deus ou seu filho ou seu enviado. Depois, ele reinava por direito divino, como se um simples mortal tivesse recebido o poder político de um Deus. Por isso, o poder do governante era considerado sagrado, tirando daí sua legitimidade, que se espraiava para todo o Estado. Com essa base religiosa, o Estado privilegiava uma religião em detrimento de outras. Exemplos desses privilégios são abundantes, no passado e no presente, nos regimes políticos monárquicos e nos republicanos.

Se os Estados não nasceram laicos, um Estado torna-se laico quando prescinde da religião para sua legitimidade, que passa a se basear exclusivamente na soberania popular. Ou seja, quando o Estado prescinde da religião como elemento de coesão social e para a unidade nacional, ele torna-se um Estado laico, mesmo sem dizer isso na Constituição nem proclamar aos quatro ventos.

O primeiro resultado da laicidade é que o Estado torna-se imparcial em matéria de religião, seja nos conflitos ou nas alianças entre as organizações religiosas, seja na atuação dos não crentes. O Estado laico respeita, então, todas as crenças religiosas, desde que não atentem contra a ordem pública, assim como respeita a não crença religiosa. Ele não apoia nem dificulta a difusão das ideias religiosas nem das ideias contrárias à religião.

O segundo resultado da laicidade do Estado é que a moral coletiva, particularmente a que é sancionada pelas leis, deixa de ter caráter sagrado, isto é, deixa de ser tutelada pela religião, passando a ser definida no âmbito da soberania popular. Isso quer dizer que as leis, inclusive as que têm implicações éticas ou morais, são elaboradas com a participação de todos – dos crentes e dos não crentes, enquanto cidadãos. O Estado laico não pode admitir imposições de instituições religiosas, para que tal ou qual lei seja aprovada ou vetada, nem que alguma política pública seja mudada por causa dos valores religiosos. Mas, ao mesmo tempo, o Estado laico não pode desconhecer que os religiosos de todas as crenças têm o direito de influenciar a ordem política, fazendo valer, tanto quanto os não crentes, sua própria versão sobre o que é melhor para toda a sociedade.

De todo modo, vale não esquecer que a laicidade do Estado é um processo. Não existe no mundo um Estado totalmente laico, como não existe um Estado totalmente democrático. Como a democracia, a laicidade é um processo, uma construção social e política.

Mas o estado é laico sim ou não?

É difícil responder à pergunta em termos de "sim" ou "não". A laicidade não existia no tempo do Império, já foi maior no início do período republicano, pelo menos na educação pública, e é hoje maior do que naquela época na legislação sobre a família. É como a democracia. O Estado brasileiro é hoje mais democrático do que foi em qualquer momento do passado, mas há muito, muito mesmo a fazer para ampliar a democracia. Já houve recuos, mas os avanços prevalecem.

Em suma: o Estado brasileiro não é totalmente laico, mas passal lentamente por um processo de laicização.

Na sua formação, o Estado brasileiro nada tinha de laico. A Constituição do Império (1824) foi promulgada por Pedro I "em nome da Santíssima Trindade". O catolicismo era religião oficial e dominante. As outras religiões, quando toleradas, eram proibidas de promoverem cultos públicos, apenas reuniões em lugares fechados, sem a forma exterior de templo. As práticas religiosas de origem africana eram proibidas, consideradas nada mais do que um caso de polícia, como até há pouco tempo. O clero católico recebia salários do governo, como se fosse formado de funcionários públicos. O Código Penal proibia a divulgação de doutrinas contrárias às "verdades fundamentais da existência de Deus e da imortalidade da alma". Os professores das instituições públicas eram obrigados a jurarem fidelidade à religião oficial, que fazia parte do currículo das escolas públicas primárias e secundárias. Só os filhos de casamentos realizados na Igreja Católica eram legítimos, todos os outros eram "filhos naturais". Nos cemitérios públicos, só os católicos podiam ser enterrados. Os outros tinham de se fingir católicos ou procurarem cemitérios particulares, como o "dos ingleses" (evangélicos), no Rio de Janeiro.

A situação de hoje é bem diferente daquela, mas ainda está longe de caracterizar um Estado laico. As sociedades religiosas não pagam impostos (renda, IPTU, ISS, etc ) e recebem subsídios financeiros para suas instituições de ensino e assistência social. O ensino religioso faz parte do currículo das escolas públicas, que privilegia o Cristianismo e discrimina outras religiões, assim como discrimina todos os não crentes. Em alguns estados, os professores de ensino religioso são funcionários públicos e recebem salários, configurando apoio financeiro do Estado a sociedades religiosas, que, aliás, são as credenciadoras do magistério dessa disciplina. Certas sociedades religiosas exercem pressão sobre o Congresso Nacional, dificultando a promulgação de leis no que respeita à pesquisa científica, aos direitos sexuais e reprodutivos. A chantagem religiosa não é incomum nessa área, como a ameaça de excomunhão. Há símbolos religiosos nas repartições públicas, inclusive nos tribunais.

A expressão Estado laico não consta da constituição de 1988, mas parte de seu conteúdo pode ser encontrado nela: entre as interdições à União, aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios, está a de

"Estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-las, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público."

Assim formulado, o texto constitucional permite associações entre o Estado e instituições religiosas que, se não interdita consciência e crença, privilegia uns credos em detrimento de outros, e, mais ainda, privilegia os crentes diante dos não crentes em matéria religiosa.

O Estado brasileiro tem tratados com o Vaticano, ente estatal da Igreja Católica, em matérias como a capelania militar, além de concordatas implícitas, como a que mantém o laudêmio. Este é um resquício do direito medieval, que persiste até hoje no Brasil. Ele consiste numa taxa que o proprietário de um imóvel tem de pagar anualmente (foro). Além disso, cada vez que o imóvel sujeito ao laudêmio é vendido, tem-se de pagar uma taxa calculada à base de 2,5% a 5,5% do valor da transação - chega a ser maior do que o imposto de transmissão devido à Prefeitura Municipal. Além da família imperial, dioceses da Igreja Católica e irmandades religiosas beneficiam-se do laudêmio nas áreas centrais das cidades mais antigas do país. Se as Igrejas Evangélicas não recebem recursos do laudêmio, beneficiam-se de outros privilégios, como as concessões de emissoras de rádio e televisão, além de acesso a recursos públicos para atividades assistenciais e educacionais. O art. 150 da Constituição proíbe a criação de impostos federais, estaduais e municipais sobre "templos de qualquer culto".

Durante a preparação da visita do papa Bento XVI, em maio de 2007, o Vaticano pressionou o governo brasileiro a assinar um pacto para consolidar os privilégios da Igreja Católica, assim como para estabelecer outros, como o livre acesso às terras indígenas, para ação religiosa. Naquela ocasião, denúncias de entidades laicas e matérias na imprensa, de que um acordo secreto estava sendo elaborado, frustraram a iniciativa, que, aliás, recebeu a rejeição do Presidente da República, que afirmou ser "o Brasil um Estado laico". No entanto, os entendimentos continuaram, secretamente, e culminaram na assinatura da Concordata, em Roma, em novembro de 2008. O texto encontra-se no Congresso Nacional para ser homologado ou rejeitado.

Nesse processo de construção do Estado laico, há avanços e recuos. Aqui vão dois exemplos. Primeiro, dois exemplos de avanço seguido de recuo. A Constituição Republicana de 1891 determinava que fosse laico o ensino ministrado nas escolas públicas, mas a aliança do Governo Vargas com a Igreja Católica fez com que o ensino religioso voltasse às escolas públicas, mediante decreto, em 1931, e por determinação constitucional, em 1934. Desde então, todas as constituições preveem o ensino religioso nas escolas públicas, um retrocesso. Vamos a outro. As duas Leis de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (1961 e 1996) foram promulgadas com uma cláusula que proibia o uso de recursos públicos para o ensino religioso nas escolas públicas - um avanço na direção da laicidade do Estado. Mas, essa cláusula foi retirada das duas leis, pelo mesmo Congresso que as promulgara, por causa da pressão da Igreja Católica - outro recuo na laicidade. Agora, um exemplo de avanço da laicidade do Estado, este bem consolidado. Apesar da longa e sistemática oposição do clero da Igreja Católica contra a possibilidade legal de dissolução da sociedade conjugal, o divórcio foi instituído, por lei do Congresso Nacional, em 1977. Neste caso, a moral coletiva foi retirada da tutela religiosa, portanto, houve um avanço no processo de laicização do Estado que refletiu a secularização da Sociedade.

O que é liberdade religiosa?

A liberdade religiosa é o direito que todas as pessoas têm de exercer sua religião ou até de não ter qualquer crença. Qualquer ofensa a esse direito pode ser coibida por medidas jurídicas.
Garantir a liberdade religiosa é diferente de simplesmente tolerar uma religião. Não é um favor que as pessoas fazem, mas obrigação de todos e do Estado.

O que o estado laico não é:

Antes de qualquer outra coisa, é preciso dizer que o Estado laico não é confessional. O Estado confessional é aquele que privilegia uma certa religião ou um grupo de religiões, transferindo para ela(s) recursos financeiros públicos, direta ou indiretamente, sancionando legalmente suas diretrizes morais e introduzindo nos currículos escolares das escolas públicas sua(s) doutrina(s). O Estado confessional pode ter uma religião exclusiva, proibindo as demais, ou privilegiar uma(s) e tolerar outras. O Estado brasileiro era confessional durante o Império, assim como são confessionais Estados contemporâneos, como a Grã-Bretanha, o Irã, Israel e a Dinamarca, que têm, religiões privilegiadas, respectivamente o Cristianismo de Confissão Anglicana, o Islamismo, o Judaísmo e o Cristianismo de Confissão Luterana.

Algumas pessoas pensam que basta a separação jurídica entre o Estado e as sociedades religiosas (separação Igreja–Estado) para que a laicidade exista. Não é assim. Há países que não têm religião oficial e nem por isso são laicos. Por outro lado, existem antigas monarquias, com religião oficial, que são mais laicas do que certos Estados latino-americanos. Por exemplo, a Grã-Bretanha e a Dinamarca são mais laicas do que o Brasil e a Argentina, que se separaram formalmente da Igreja Católica há mais de um século.

O Estado laico tampouco é um Estado concordatário. Concordata é um termo próprio do universo simbólico da Igreja Católica, a única organização religiosa que tem um Estado para representar-la, o Vaticano. Concordatas são, então, tratados firmados entre os governos de dois Estados, o Vaticano e um outro. Se a concordata com a Itália não foi a primeira, constitui a matriz das que a Igreja Católica estabelece com diferentes governos, com esse nome ou outro. O governo fascista italiano firmou com o Vaticano uma concordata (Tratado de Latrão), pelo qual o primeiro reconheceu certas propriedades eclesiásticas, introduziu o catecismo católico no currículo das escolas públicas e símbolos religiosos católicos nas escolas e outros estabelecimentos públicos, além de outros privilégios econômicos e políticos. O Vaticano, por sua vez, reconheceu o Estado italiano (que se constituiu a partir da unificação estatal, em 1870, que incorporou os Estados pontifícios). Mesmo depois da queda do fascismo, o Estado italiano vem renovando a concordata com o Vaticano.

O Estado laico também não é ateu. O Estado ateu é aquele que proclama que toda e qualquer religião é alienada e alienante, em termos sociais e individuais. Para combater a alienação, o Estado ateu combate, então, toda e qualquer religião. Se não consegue proibi-la, completamente, dificulta ao máximo suas práticas, inibe sua difusão e desenvolve contínua e sistemática propaganda anti-religiosa. A União Soviética e os Estado socialistas constituídos no leste europeu, assim como a República Popular da China estabeleceram regimes ateus, com base na concepção de que toda e qualquer religião seria fonte de alienação do povo. Houve diferentes graus na efetivação da política ateísta, mais radical na Alemanha Oriental do que na Polônia, por exemplo, onde todo o aparato formativo da Igreja Católica manteve-se em operação, acabando por se tornar um dos principais elementos de dissolução do “socialismo real”

Bom espero que tenha esclarecido algumas duvidas sobre o estado laico. Esse tema é extenso demais, mas com o tempo eu irei abordando com mais frequência. Fiquem a vontade para comentar, criticar, acrescentar, toda e qualquer opinião será bem vinda.Obrigado por disponibilizarem seu tempo e sua paciência para ler esse artigo até o fim. Então até a próxima pessoal!

Consulta:

BIRMAN, Patrícia e outros. Religião e espaço público, São Paulo, Attar Editorial, 2003.
BOURDIEU, Pierre, A economia das trocas simbólicas, São Paulo, Perspectiva, 1974.
BRUNEAU, Thomas C. O catolicismo brasileiro em época de transição, São Paulo, Loyola, 1973.
CUNHA, Luiz Antônio e CAVALIERE, Ana Maria, “O ensino religioso nas escolas públicas brasileiras: formação de modelos hegemônicos”, in Lea Paixão e Nadir Zago (orgs.) Sociologia da Educação – pesquisa e realidade brasileira, Petrópolis, Vozes, 2007.
Dossiê “Religiões no Brasil”, Estudos Avançados (São Paulo), vol., 18, no. 52, 2004.
JACOB, César R. e outros. Atlas da filiação religiosa e indicadores sociais no Brasil. São Paulo, Editora Loyola, 2003.
MARIZ, Cecília L. A teologia da batalha espiritual: uma revisão bibliográfica. BIB- Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais (Rio de Janeiro, Brasil), no. 47, 1999.
PIERUCCI, Antônio Flávio, “Interesses religiosos dos sociólogos da religião”, in Ari Pedro Oro e Carlos Alberto Steil (orgs), Globalização e religião, Petrópolis, Vozes, 1997.
FISCHMANN, Roseli, Estado Laico, São Paulo, Memorial da América Latina, 2008.
LOREA, Roberto Arriada (org.), Em defesa das liberdades laicas, Porto Alegre, Livraria do Advogado Editora, 2008.
http://www.nepp-dh.ufrj.br

4 comentários:

  1. EXCELENTE texto, dirimiu qualquer dúvida que ainda persistisse sobre a laicidade.

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    1. Fico feliz que tenha esclarecido suas dúvidas.
      Obrigado por acompanhar o blog

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  2. Com aquelas aulas de ensino religioso no Rio com nossos impostos? Acha mesmo que está tendo mais avanços?

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    1. Nesse caso não como já disse anteriormente, houve um retrocesso a respeito disso.Mas um dos avanços do estado laico seria o caso de adultério que não passa a ser crime, também posso citar o caso do divórcio que antes era muito difícil de ter por conta da igreja. Também tem a questão da campanha de prevenção ao vírus da AIDS que hoje é considerada a melhor do mundo, isso tendo a igreja sendo contra o uso de preservativos.
      Então vagarosamente temos sim alguns avanços significativos na laicidade do estado. Mas cabe ainda fazer um levantamento mais completo de todos os avanços e retrocessos a respeito da laicidade do estado.

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